A Turquia iniciou esta quarta-feira uma ofensiva terrestre no nordeste da Síria como parte de um ataque, há muito anunciado e batizado como Operação Paz de Primavera, contra o território mantido pelos curdos. Em comunicado, o Ministério turco da Defesa informou que as tropas atravessaram a fronteira com a Síria, a leste do rio Eufrates, ao lado de forças rebeldes sírias aliadas.
A ofensiva terrestre começou horas depois do bombardeamento aéreo e de artilharia contra o que os militares turcos descrevem como 181 “posições terroristas”.
Ao anunciar a operação, o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, disse que os objetivos de Ancara são “impedir a criação de um corredor de terror na fronteira sul e levar paz à área”. Erdogan quer afastar as Forças Democráticas Sírias da zona fronteiriça. Estas forças são o principal aliado dos EUA na luta contra o Daesh, o autoproclamado Estado Islâmico, mas os seus combatentes são considerados terroristas pela Turquia devido às alegadas ligações com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).
A ação militar de Ancara provocou alarme entre as potências mundiais e as agências humanitárias, que alertaram que a ofensiva poderia desencadear uma nova crise e mais deslocamentos em massa. O Conselho de Segurança da ONU deverá discutir o assunto esta quinta-feira à porta fechada.
Pelo menos 15 pessoas, incluindo oito civis, morreram esta quarta-feira durante a ofensiva turca, disse o Observatório Sírio para os Direitos Humanos.
O que está em jogo nesta incursão militar?
No último domingo, os EUA anunciaram que não iriam intervir numa iminente operação militar turca contra forças curdas, abrindo assim caminho às tropas de Ancara. O anúncio foi descrito pelos analistas como uma mudança repentina da política norte-americana, traduzindo-se, na prática, no abandono dos aliados curdos na região.
Algumas horas antes do início da ofensiva, o diretor de comunicações do Governo turco, Fahrettin Altun, anunciava no Twitter que as “forças armadas turcas, juntamente com o exército sírio” atravessariam “em breve a fronteira turco-síria”. O responsável dava “duas opções” às Unidades de Proteção Popular (YPG), uma organização armada curda que a Turquia considera uma organização terrorista: “ou desertam ou teremos de os impedir de atrapalhar” a ofensiva turca contra o Daesh.
Ancara pretende que o nordeste sírio fique livre de combatentes das YPG. Estas unidades eram uma parte importante das Forças Democráticas Sírias, as forças apoiadas pelos EUA que derrotaram o Daesh na Síria. A Turquia considera as YPG uma extensão do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que luta pela autonomia curda na Turquia há mais de três décadas. As YPG negam qualquer vínculo organizacional direto àquele partido. No passado, Ancara já condenou Washington por apoiar as YPG.
“A Turquia está em guerra com o PKK há décadas e sente-se ameaçada pelo crescente poder da ala síria do grupo. Este ataque visa impedir a consolidação de uma entidade autónoma, apoiada pelos EUA e liderada por curdos, no nordeste da Síria”, comenta ao Expresso Nicholas Danforth, investigador do German Marshall Fund, em Istambul.
Por outro lado, o Presidente dos EUA, Donald Trump, “queria retirar as forças americanas da Síria sem qualquer consideração sobre como isso seria feito ou o que aconteceria depois”. “As autoridades americanas conseguiram convencê-lo a desistir dessa ideia durante mais de um ano mas ele acabou por fazer vingar a sua vontade”, acrescenta o investigador.
O que ganha Erdogan com esta ofensiva?
Albergando 3,6 milhões de sírios que fugiram da guerra civil no seu país, a Turquia pretende igualmente transferir dois milhões desses refugiados do seu território para uma “zona segura”. O comunicado de domingo da Casa Branca surge depois de, na véspera, o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, ter anunciado que a incursão turca aconteceria em breve. Durante uma conversa telefónica com Trump, Erdogan mostrou-se frustrado com a falta de progresso na criação de uma “zona segura” de cerca de 30 quilómetros no nordeste da Síria, ao longo da fronteira com a Turquia, com que os aliados da NATO tinham concordado em agosto.
Erdogan afirmou que não restou à Turquia senão agir sozinha na formação da “zona segura”, uma vez que os EUA e outros aliados da NATO “demoraram tanto tempo a agir”. “A Turquia e os seus antigos aliados ocidentais têm objetivos divergentes na Síria há muitos anos e, em determinado momento, as contradições tornaram-se demasiado profundas”, refere Nicholas Danforth. “A Turquia queria derrotar as YPG e os EUA queriam trabalhar com as YPG para derrotar o Daesh. Em retrospetiva, é notável como as coisas não chegaram mais cedo a um ponto de rutura”.
“Se tudo correr como planeado, Erdogan beneficiará politicamente, tanto pelo conflito propriamente dito como pela sua proposta de reinstalar refugiados sírios na região que a Turquia ocupa”, prevê o investigador ao Expresso.
Quais são as consequências imediatas desta incursão?
Para já, além das vítimas no terreno, a ofensiva turca provocou indignação no Congresso dos EUA, tanto de democratas como de republicanos. “As notícias da Síria são nauseantes. As tropas turcas invadem a norte, forças apoiadas pelos russos a sul e combatentes do Daesh atacam Raqqa”, descreveu a congressista republicana Liz Cheney. “Impossível perceber porque é que Trump está a deixar que aliados da América sejam massacrados e a permitir o regresso do Daesh”, criticou.
Numa declaração conjunta, o senador republicano Lindsey Graham e o senador democrata Chris Van Hollen sublinharam que “este ataque ilegal e injustificado contra um amigo e parceiro americano ameaça as vidas e o sustento de milhões de civis, muitos dos quais já fugiram das suas casas noutras partes da Síria para encontrarem segurança na região”. “Esta invasão permitirá o ressurgimento do Daesh na Síria, encorajará os inimigos da América, incluindo a Al-Qaeda, o Irão e a Rússia, e iniciará mais um conflito interminável no que tem sido, até hoje, uma das áreas mais seguras e estáveis da Síria”, advertiram.
Tanto o Pentágono como o Departamento de Estado aconselharam Trump a não abrir caminho à invasão, defendendo que uma presença americana é necessária para deter o Daesh e manter o Irão e a Rússia, ambos influentes dentro da Síria, sob controlo. O secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, afirmou ser “falso” que a retirada das tropas dos EUA do nordeste da Síria fosse uma luz verde para o massacre dos curdos.
“A operação transfronteiriça da Turquia irá complicar ainda mais a guerra civil na Síria, exacerbar o problema doméstico curdo na Turquia e prejudicar a campanha para derrotar o Daesh”, resume o investigador do German Marshall Fund ao Expresso.
Por que motivo os curdos sírios se dizem traídos pelos EUA?
As Forças Democráticas Sírias descreveram o anúncio da retirada de Washington como “uma facada nas costas” mas prometeram “defender” a sua terra “a todo o custo”. Na segunda-feira, Trump ameaçou “destruir” a economia turca no caso de a intervenção de Ancara ultrapassar os limites. “Como disse antes, e apenas para reiterar, caso a Turquia faça algo que eu, na minha grande e inigualável sabedoria, considere que está fora dos limites, destruirei e aniquilarei totalmente a economia da Turquia”, escreveu no Twitter. “Já o fiz anteriormente!”, acrescentou Trump, numa referência à queda da lira turca, que em agosto perdeu 25% do seu valor após Washington ter convertido a libertação do missionário protestante Andrew Brunson, que entretanto regressou aos EUA, numa causa diplomática.
Após o início da invasão, o Presidente norte-americano minimizou a aliança com os curdos, 11 mil dos quais morreram a apoiar a missão dos EUA contra o Daesh. “Eles não nos ajudaram na II Guerra Mundial, não nos ajudaram com a Normandia, por exemplo. Eles estão lá para nos ajudar com a sua terra, e isso é uma coisa diferente”, argumentou.
Ainda assim, apesar de ter aberto caminho às tropas turcas, Trump classificou a operação como uma “má ideia” e voltou a ameaçar destruir a economia de Ancara se os militares “ultrapassarem os limites”. Expostas pela retirada de Washington, as Forças Democráticas Sírias apelaram aos EUA e aos seus aliados para criarem uma “zona de exclusão aérea” capaz de as proteger dos ataques turcos.
As ameaças de novos ataques do Daesh devem ser levadas a sério?
Sim. Na sequência do início da “agressão turca”, as Forças Democráticas Sírias revelaram em comunicado que suspenderiam as operações militares contra o Daesh no norte da Síria.
Horas antes da ofensiva, foi noticiado um ataque de combatentes do Daesh na cidade de Raqqa, que teve como alvo um posto das Forças Democráticas Sírias numa cidade que já foi a capital de facto do autoproclamado Estado Islâmico.
Desde o anúncio de não intervenção, feito no domingo pela Casa Branca, os curdos sírios têm vindo a alertar que uma invasão militar turca fará ressurgir o Daesh.
Trump desvalorizou esta quarta-feira a possível fuga de prisioneiros do Daesh das prisões curdas, dizendo essencialmente tratar-se de um problema europeu. “Bom, eles vão fugir para a Europa, é para lá que eles querem ir”, sublinhou, acrescentando que os EUA não têm “soldados na área”.
2019-10-10 06:41:31Z
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