As 23h00 deste dia 31 de janeiro marcam a saída oficial, mas também o início de um período de transição que durará 11 meses e durante o qual o Reino Unido permanecerá na união aduaneira europeia e no mercado único, podendo manter a circulação de bens, serviços e capitais enquanto negoceia uma nova relação com a União Europeia.
Nesta data história, os cidadãos do Reino Unido deixam de ser cidadãos da União Europeia, mas tal não trará, ainda, alterações às suas vidas a nível económico ou de movimentação. No período de transição, os portadores de um passaporte britânico podem continuar a viver, trabalhar e estudar na UE e os cidadãos de outros países europeus terão os mesmos direitos no Reino Unido.
Na prática, a principal mudança que se fará sentir durante os 11 meses de transição é o facto de o Reino Unido passar a estar fora das instituições políticas europeias, incluindo o Parlamento Europeu, deixando de ter uma palavra a dizer sobre as decisões tomadas para os 27 Estados-membros.
Vinte e sete dos 73 lugares que passarão a estar vagos no Parlamento Europeu com a saída do Reino Unido serão redistribuídos por 14 Estados-membros. Os restantes 46 lugares ficam, para já, sem ocupantes.
Só após o período de transição, que termina a 31 de dezembro de 2020 mas que poderá, eventualmente, ser prolongado por mais 12 ou 24 meses, surgirão as grandes mudanças. E que mudanças são essas?
O que acontece agora?
A partir de 1 fevereiro, data de início do período de transição, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, terá 30 dias para publicar os seus objetivos de negociação com a União Europeia.
Entretanto, a 25 de fevereiro, os Estados-membros irão reunir-se em Bruxelas para aprovar o arranque das negociações, cuja liderança deverá ser entregue a Michel Barnier, até agora negociador-chefe da UE para o Brexit.
Assim sendo, é possível que as negociações entre o Reino Unido e a União Europeia, cujo objetivo é estabelecer a futura relação entre ambas as partes, apenas comecem no início de março.
Ainda se sabe pouco sobre aquilo que Reino Unido e UE tencionam negociar em concreto. Sabe-se, porém, que no topo da lista deverá estar a negociação de um acordo de livre comércio, fundamental para que o Reino Unido possa continuar a realizar trocas comerciais com os 27 sem que haja tarifas adicionais sobre os bens importados.
Michel Barnier já alertou que a União Europeia apenas concordará com um acordo de livre comércio caso o Reino Unido aceite manter as normais europeias para o ambiente e para os direitos dos trabalhadores. “O acesso aos nossos mercados será proporcional aos compromissos relativos às regras comuns”, frisou o negociador-chefe em outubro, em entrevista a publicações europeias.
Um acordo de livre comércio não irá, no entanto, eliminar todos os eventuais impactos na economia britânica, até porque a UE se tem recusado a incluir os serviços neste pacto, aceitando apenas isenções sobre os bens. Em 2019, as exportações de bens e serviços pelo Reino Unido foram avaliadas em 1,3 mil milhões de euros, dos quais 49 por cento vieram de países da União Europeia, de acordo com a BBC.
Para além de um acordo comercial, é também necessário que as duas partes decidam de que forma vão cooperar em áreas como a segurança, educação, aplicação de leis europeias ou pesca. Este último tema será um dos mais sensíveis, com a probabilidade de a UE exigir o acesso a águas britânicas, algo que Londres se tem mostrado relutante em aceitar.
Boris Johnson tem argumentado que o Reino Unido está totalmente alinhado com as atuais regras europeias e que, por isso, as negociações deverão ser simples e breves. Críticos do Brexit acreditam, por outro lado, que o Governo britânico quer ter liberdade para divergir das regras europeias de modo a poder criar acordos com outros países, o que poderá tornar mais difíceis as negociações com Bruxelas.
Relações com outros países
Em complemento das negociações com a UE, durante o período de transição equipas de negociadores vão estar dispersas por vários países para tentarem estabelecer novos acordos comerciais e alterar alguns das centenas de tratados internacionais que o Reino Unido está a abandonar ao deixar a União Europeia.
Na semana passada, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Steven Mnuchin, disse estar “um pouco desapontado” por não ter ainda negociado com o Reino Unido. Em resposta, o ministro britânico das Finanças, Sajid Javid, frisou que a prioridade é alcançar um acordo com a UE.
Ainda assim, chegar a um acordo com os Estados Unidos “é uma grande prioridade” e as duas partes já começaram “a trabalhar em conjunto nesse sentido”, acrescentou Javid no Fórum Económico Mundial, em Davos.
O Reino Unido é livre de negociar com qualquer país fora da União Europeia durante o período de transição que deverá durar até ao final deste ano. No entanto, eventuais acordos criados apenas poderão entrar em vigor no final desse período.
E depois do período de transição?
O período de transição deverá terminar a 31 de dezembro de 2020. No entanto, se no dia 30 de junho deste ano Boris Johnson e Bruxelas concluírem que as negociações estão num impasse, esse prazo pode ser prolongado por 12 ou 24 meses. O primeiro-ministro britânico já sublinhou que não pretende uma extensão, comprometendo-se a concluir as negociações dentro do menor tempo possível.
Caso Johnson cumpra com esta promessa, o Reino Unido deixará de estar confinado às regras europeias a 1 de janeiro de 2021. Nesse dia, um de dois cenários será possível: ou as negociações terão terminado com um acordo comercial e dar-se-á início a uma nova relação amigável entre as duas partes ou, na ausência de acordo, essa relação será instável e o Reino Unido poderá estar sujeito a tarifas sobre as exportações.
Terminar o período de transição sem um acordo comercial poderá ter outras sérias consequências a nível doméstico, sendo uma delas a possibilidade de empresas quererem abandonar o Reino Unido e fixar-se noutros países, debilitando a economia britânica.
A ausência de um acordo levaria ainda a que a economia passasse a reger-se pelos termos da Organização Mundial do Comércio, algo visto pelos especialistas como prejudicial para o Reino Unido.
Negociações sobre a Irlanda do Norte
A questão do futuro sistema comercial da Irlanda do Norte, que ao contrário da República da Irlanda vai sair da União Europeia, continua a ser uma das mais complexas do Brexit.
A Irlanda do Norte irá manter-se em território aduaneiro do Reino Unido e, por essa razão, serão aplicados os critérios alfandegários britânicos quando receber bens de países não europeus.
No entanto, quando chegarem à Irlanda do Norte produtos do Reino Unido para daí serem enviados a países da União Europeia, os portos irão usufruir dos direitos aduaneiros da UE.
Estas alterações implicam controlo e verificação sobre bens que se movimentem entre a Irlanda do Norte e o Reino Unido. O que falta agora negociar entre Reino Unido e União Europeia são, precisamente, as especificidades dessa verificação.
Boris Johnson tem insistido que os bens movimentados entre a Irlanda do Norte e o Reino Unido não deverão estar sujeitos a verificações ou barreiras de qualquer tipo. A UE discorda, considerando que têm de existir novas verificações, especialmente em relação a produtos alimentares.
Em relação aos bens que cruzem a fronteira entre as duas Irlandas, Reino Unido e UE já concordaram que o Brexit não deverá originar novos controlos nem verificações sobre os mesmos.
O que acontece aos britânicos na UE e aos europeus no Reino Unido?
A partir de 1 de janeiro de 2021 os britânicos que residam no Reino Unido deverão perder o direito à livre movimentação. Caso pretendam permanecer por longos períodos de tempo em algum dos Estados-membros, terão de se sujeitar a processos de candidatura. Se tal candidatura for aceite, os cidadãos britânicos nesses países poderão, passado algum tempo, pedir autorização para residência permanente.
Quanto a britânicos que neste momento já vivem em países da UE, os seus direitos deverão estar garantidos, incluindo o da livre movimentação entre Estados-membros. Ainda assim, um britânico que, por exemplo, habite em Portugal e queira mudar-se para outro país europeu para trabalhar, poderá não conseguir fazê-lo tão facilmente quanto um cidadão da União Europeia. Neste momento, cerca de três milhões de europeus vivem no Reino Unido e aproximadamente um milhão de britânicos vive em países da UE.
Já para os cidadãos de países europeus que atualmente residem no Reino Unido a solução ainda não é certa, mas o Governo britânico já garantiu que não serão alvo de deportação e que não perderão os direitos sociais ou laborais, desde que solicitem a confirmação do seu “estatuto de permanência” (settled status).
Aqueles que estão há menos de cinco anos no país podem candidatar-se a a um "pré-estatuto de permanência" desde que tenham chegado ao Reino Unido antes do fim do período de transição que se segue ao Brexit, ou seja, 31 de dezembro de 2020. Nestes casos, porém, os candidatos apenas podem viver e trabalhar no Reino Unido por um período máximo de cinco anos.
A partir de 1 de janeiro de 2021, cidadãos da União Europeia que queiram construir uma vida no Reino Unido deverão necessitar de vistos e autorizações de trabalho.
Quanto a viagens mais breves, tanto o Reino Unido como a UE já mostraram interesse em criar um regime de isenção de visto para estadias curtas de até 90 dias, à semelhança do que acontece noutros países do mundo.
De acordo com as sondagens, o povo britânico continua dividido em relação ao Brexit. Enquanto alguns estão entusiasmados com a perspetiva de um Reino Unido global e independente da UE, outros temem um país mais isolado e um futuro incerto.
Talvez seja essa divisão que leva Boris Johnson a mostrar-se cuidadoso com o modo como vai assinalar a data da saída oficial. Alguns dos apoiantes do Brexit defenderam que o mais famoso relógio do mundo deveria tocar às 23h00 de dia 31 de janeiro para celebrar o momento. O Governo optou, porém, por deixar o Big Ben em silêncio e projetar no Número 10 de Downing Street uma contagem decrescente.
Já Nigel Farage, líder do partido do Brexit, planeou em conjunto com a organização eurocética Leave Means Leave uma celebração pública na Praça do Parlamento, no centro de Londres, durante a qual deverá ser utilizado um sistema de som para reproduzir as badaladas do Big Ben.
Cabe agora ao futuro ditar se o Brexit será efetivamente motivo para celebração ou se, como muitos acreditam, será a causa de arrependimentos.
2020-01-31 08:54:00Z
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