É um problema que se arrasta há anos: a taxa de cesarianas nos hospitais privados continua a corresponder a mais do dobro da dos hospitais públicos e voltou a aumentar em 2018. Dois terços dos partos no sector privado foram feitos então por cesariana, enquanto nos hospitais públicos esta taxa tem oscilado entre os 27 e os 28% do total, ainda que esteja a crescer ligeiramente de novo, depois de ter diminuído ao longo de vários anos consecutivos.
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Os números disponíveis indicam ainda que a percentagem de partos normais (não intervencionados com fórceps ou ventosas ou sem serem por cesariana) nos hospitais privados foi de apenas um sexto do total em 2018, enquanto nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ultrapassa por regra os 50%. São diferenças ainda mais difíceis de explicar quando se sabe que as gravidezes de risco são acompanhadas nos hospitais públicos e os partos mais complicados, abaixo das 32 semanas, são habitualmente realizados no SNS.
Em 2019 – a Administração Central do Sistema de Saúde disponibiliza já dados até Setembro, ainda que apenas para os hospitais públicos –, a taxa de cesarianas estava de novo a aumentar ligeiramente nestes (29,3%), depois de ter atingido um valor mínimo de 27,6% em 2016. Mas os especialistas consideram que esta percentagem já é aceitável, na sequência do trabalho levado a cabo pela Comissão Nacional para a Redução da Taxa de Cesarianas a partir de 2013, que criou material informativo para profissionais de saúde e para a população e propôs a modificação do modelo de financiamento para as cesarianas no SNS, equiparando os valores pagos por partos normais e penalizando financeiramente as unidades com taxas mais elevadas. A Direcção-Geral da Saúde (DGS) elaborou entretanto várias normas e a Ordem dos Médicos (OM) também fez recomendações neste sentido.
"Péssima medicina"
Nos hospitais privados, porém, onde o número de partos mais do que duplicou entre 1999 e 2018, as taxas continuam a ultrapassar largamente os valores recomendados, com 66,3% do total de partos, arrastando a média nacional para má posição no ranking da União Europeia. “É uma péssima medicina, péssima ética, um indicador terceiro-mundista, uma vergonha que desacredita profissionais de saúde”, defende Miguel Oliveira da Silva, ex-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, no seu último livro Quem Está Contra a Medicina.
Classificando como “inquietante” o “silêncio quase absoluto sobre o que se passa no sector privado”, o médico sustenta que “há interesses financeiros e má informação das grávidas sobre os riscos das cesarianas a pedido”. E defende que os obstetras e os anestesistas têm que informar as grávidas das vantagens do parto vaginal para a sua saúde e do feto e que isso deve constar do consentimento informado que assinam quando optam pela cesariana. Quanto à reduzida percentagem de partos normais realizados nos privados, Miguel Oliveira da Silva especula que poderá ficar a dever-se “à pressa em fazer o parto por medo” de complicações e, eventualmente, de processos legais.
“Os hospitais privados apanham a carne e mandam os ossos para os públicos”, critica Luís Graça, vice-presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia, que adianta que alguns privados “já fazem partos abaixo das 30 semanas mas depois transferem para os públicos quando o plafond dos seguros se esgotam ao fim de três dias”. A norma instituída quando era ministra da Saúde Ana Jorge – a de que os privados não devem fazer partos abaixo das 32 semanas – não está a ser cumprida, diz. “Ninguém monitoriza, fiscaliza, pune”, lamenta.
Sobre a elevada taxa de cesarianas e o baixo número de partos normais nos privados, Luís Graça avança com “uma explicação meramente interpretativa” e que se prende com o facto de “terem contratado muitos médicos com pouco treino”, os quais, por “insegurança" e como “têm muito medo de processos”, optam por não deixar arrastar o trabalho de parto. Nos públicos, a comissão “fez um bom trabalho e a taxa actual é perfeitamente aceitável”, observa.
Preços iguais para cesarianas e partos normais
Frisando que é necessário analisar não só a taxa de cesarianas mas toda uma série de indicadores de qualidade e de assistência materno-infantil “de forma cuidadosa e global”, o colégio da especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos considera, por escrito, “razoável que num país como Portugal a taxa global seja da ordem dos 28% (26 a 30%)” e lembra que se tem referido ao facto de nos privados a taxa “exceder largamento os valores recomendados” em diversas instâncias. A situação deve ser avaliada pelas direcções clínicas, pela DGS e pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS), nota.
Para alterar a situação, preconiza, além da formação dos recursos humanos e do investimento na literacia da população (a este nível, enfatiza o “aumento brutal dos processos médico-legais"), destaca a necessária “acessibilidade dos serviços devidamente equipados e providos de recursos humanos, com frequência abaixo dos recomendados”. Lembra igualmente que o colégio da especialidade reviu as recomendações, equiparando os valores da compensação financeira pelo parto normal e a cesariana. O que não se sabe é se isto está a ser cumprido.
Os responsáveis da DGS, que também responderam por escrito às perguntas do PÚBLICO, defendem que “não se pode falar”, por enquanto, de “uma tendência ascendente” das cesarianas no SNS, “porque é a primeira vez desde 2012 que se regista uma subida de um ponto percentual nos hospitais públicos e PPP [parcerias público-privadas]”. É “prematuro avançar explicações sobre as causas com base nesta subida de 1%, cujo significado é de difícil interpretação”. Sobre os outros hospitais, consideram apenas que, “não estando ainda concluída uma análise ao sector privado, nada indica que a tendência seja diferente”.
Quanto ao facto de há largos anos a taxa de cesarianas ser, nestes, mais do dobro da dos hospitais públicos e de nos privados a percentagem de partos normais ser muito reduzida, a DGS refere-se apenas ao primeiro fenómeno, sublinhando que “está a acompanhar esta situação” e admitindo nomear “uma nova comissão caso se verifique esta necessidade”. No último relatório sobre Saúde Infantil e Juvenil, a DGS concluiu que há “espaço para melhoria e necessidade de reflexão” acerca da “assimetria” entre privados e públicos.
Sobre esta matéria, a ERS adianta apenas que “o indicador referente à taxa de cesarianas é monitorizado” e que também faz parte de uma das áreas de avaliação do SINAS (Sistema Nacional de Avaliação em Saúde). O PÚBLICO pediu esclarecimentos à Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, que não respondeu.
2020-01-13 06:52:00Z
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